DISCURSOS GLOBAIS E PRÁTICAS LOCAIS: A INCLUSÃO SOCIAL A PARTIR DO AMBIENTE ESCOLAR

Resumo: O trabalho se constitui relatório de pesquisa e estudo que destaca dados dos educandos do ensino médio noturno em relação ao matutino de Colégio estadual do Rio de Janeiro que participaram, de maio a outubro de 2015, da pesquisa intitulada “Grêmio e outros espaços-tempos de diálogo político da juventude contemporânea: possibilidades na educação escolar” do Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude (UERJ), que objetiva construção de conhecimento acerca da formação política da juventude contemporânea pela educação escolar. O subsídio para o destaque está na reflexão sobre a sociologia das ausências e emergências, com Sousa Santos (2002), na tentativa de uma reinvenção da emancipação social.

Palavras-chave: Juventude; ensino noturno; emancipação social


INTRODUÇÃO

Nas décadas de 1990, a oferta do ensino médio no período noturno foi uma das principais estratégias para garantir o acesso de adolescentes, jovens e adultos das camadas populares a este nível de ensino. Destaco, em especial, o caso da Educação de Jovens e Adultos no município de Goiânia/GO, que ganhou a denominação de Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos para atender demandas de diversos setores, em especial de um movimento social em torno de adolescentes moradores de rua que lutavam pelo direito à educação desses sujeitos. Estando na escola no turno noturno, não estavam nas ruas. Esse exemplo é apenas uma alusão da importância do turno noturno para se pensar educação e direitos humanos, diversidade cultural e inclusão social. O ensino médio noturno, no entanto, não é responsável pela maioria das matrículas do ensino médio, prevalecendo os turnos matutino e vespertino para os jovens de 15 a 17 anos, majoritariamente, embora seja eficiente na garantia de direitos educativos de moças e rapazes brasileiros que conciliam, geralmente, estudo e trabalho e precisam do terceiro turno para uma formação educacional. Apenas nas décadas de 1980 os cursos noturnos eram responsáveis pela maior parte das matrículas de ensino médio no Brasil. Essa realidade foi se alterando ao longo das últimas décadas, provavelmente por causa da universalização do ensino infantil e do ensino fundamental, que impulsiona a universalização do ensino médio no Brasil.

O ensino médio noturno tem como característica própria o seu público, formado, em geral, por alunos trabalhadores. A frequência desse discurso deve-se, entre outras razões, ao que impulsionou a sua existência, em âmbito nacional, e que impulsiona a sua sobrevivência: garantir o acesso à educação, a educação e direitos humanos, diversidade cultural e inclusão social para aqueles que já estão no mercado de trabalho. Aqui quero destacar não apenas o trabalho formal, mas também o trabalho doméstico, informal e autônomo, em que se encontram a maioria dos jovens brasileiros e, em especial, o público feminino. Estamos falando de jovens ou adultos, que podem, ou não, ter abandonado os estudos e quiseram voltar a estudar. Ou jovens que, por diversos motivos, preferem estudar à noite! Embora exista um consenso de que para melhorar o baixo desempenho dos alunos do ensino médio sejam escolas em tempo integral, ou atividades de reforço no contra-turno, a situação do ensino médio noturno traz diversas complexidades.

Em geral, quando comparados à população dos turnos matutinos e vespertinos, nós observamos um perfil diferenciado de estudantes no noturno. Por diversos fatores, e entre eles a questão do trabalho, o ensino médio noturno enfrenta diferentes desafios e dificuldades para atender de forma satisfatório os seus jovens que não teriam acesso à escola sem a existência do terceiro turno e, por isso, escolas abertas neste período cumprem um papel importante. Estamos falando de uma realidade de jovens que trabalham, que não são exclusivamente estudantes, ou de jovens que não conseguem, por questões não apenas sociais, frequentar a escola nos turnos diurnos.

Ao falar em termos gerais sobre o público do turno noturnos, vale destacar a relevância de se pensar dialogicamente discursos globais e práticas locais. Por essa razão, o trabalho que aqui se inscreve se constitui relatório de pesquisa e estudo que destaca dados dos educandos do ensino médio noturno em relação ao turno matutino de um Colégio estadual do Rio de Janeiro que participaram de uma pesquisa, de maio a outubro de 2015, como parte da pesquisa intitulada “Grêmio e outros espaços-tempos de diálogo político da juventude contemporânea: possibilidades na educação escolar” do Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A pesquisa, em termos gerais, objetiva a construção de conhecimento acerca da formação política da juventude contemporânea pela educação escolar.

Ao destacarmos esses dados, teremos como subsídio de análise crítica uma breve reflexão sobre a sociologia das ausências e emergências, com Sousa Santos (2002, p. 258), na tentativa de uma reinvenção da emancipação social.  “Ao dilatarem o presente e contraírem o futuro, a sociologia das ausências e a sociologia das emergências, cada um à sua maneira, contribuem para desacelerar o presente, dando-lhe um conteúdo mais denso e substantivo”. Falaremos, portanto, tanto em relação às experiências quanto às expectativas sociais, mas de forma equilibrada conforme buscam ambas sociologias propostas. No caso das sociologias das emergências, radicalizar as expectativas, embora medidas por capacidades e possibilidades concretas. O sociólogo nos induz a considerar a inclusão de experiências humanas que, locais e pequenas, se comparadas ao âmbito nacional, funcionam como embriões de alternativas. Ele nos fala de uma sociologia que busca legitimar e tornar visível o que foi sendo colocado como não-existente em decorrência de um modelo hegemônico, sugerindo uma monocultura de pensamento. “O primeiro procedimento visa conhecer melhor o que nas realidades investigadas faz delas pistas ou sinais; o segundo visa fortalecer essas pistas e sinais” (Sousa Santos, 2002, p. 258). E assim, tornamos menos parcial o nosso conhecimento do que é possível e também as condições do possível.

POR UMA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS E EMERGÊNCIAS: A SUPERAÇÃO DAS TOTALIDADES EXCLUDENTES E A VISIBILIDADE DE EXPECTATIVAS GRATIFICANTES

O foco de Sousa Santos (2002) é estudar alternativas à globalização neoliberal produzidas por movimentos sociais e organização não governamentais, na luta contra a discriminação, a exclusão e pela qualidade de vida das minorias. Destacou iniciativas que contribuíam para direitos coletivos e cidadania cultural. Se chegasse à Goiânia/GO, seria possível o estudo da Educação de Jovens e Adultos no município, em especial pela construção coletiva da Secretaria Municipal de Educação e os movimentos sociais, tanto de Educação de Adultos quanto dos adolescentes moradores de rua, que levaram à denominação de Educação de Adolescentes, Jovens e Adultos.

O sociólogo não chegou à Goiânia/GO, mas realizou pesquisas em seis países considerados semi-periféricos: Moçambique, África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia e Portugal. A hipótese era de que os conflitos contra a globalização neoliberal, hegemônica, era mais intensa nesses países. Tal hipótese se confirmou, levando à constatação de que a riqueza social existente nesses países está sendo desperdiçada, levando-o a propor um modelo diferente de racionalidade, uma razão cosmopolita, que expande o presente e contrai o futuro. “A experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante” (Sousa Santos, 2002, p. 238).

A proposta de expandir o presente e contrair o futuro dialoga com o que ele chama de sociologia das ausências e sociologia das emergências, respectivamente, destacando que é preciso valorizarmos e também conhecermos a experiência social que está em curso no mundo de hoje, e não apenas ficarmos a pensar sobre o amanhã. Se chegasse ao Rio de Janeiro/ RJ, o sociólogo poderia ter tido contato com o Movimento dos Trabalhadores Desempregados “Pela Base”: movimento social que busca, a partir da mobilização do povo organizado, lutar na reivindicação dos direitos e das necessidades mais imediatas. De mais imediatas, se compreende o acesso aos serviços públicos, como educação e saúde. O que chamaria a atenção pelo Movimento é a experiência social de construir um movimento de forma coletiva e horizontal, de encontro à tradição, já desestabilizada, dos movimentos sociais no mundo.

Assim, o que o sociólogo propõe “trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como tal, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe”, cabendo à sociologia das ausências “transformar objectos impossíveis em possíveis, e com base neles transformar as ausências em presenças” (Sousa Santos, 2002, p. 246). Ele, de antemão, faz uma crítica em relação à ideia de se fornecer respostas universais a questões universais, pois apesar de o mundo ser uma totalidade inesgotável, “todas [as totalidades são] necessariamente parciais, o que significa que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes como totalidades” (Sousa Santos, 2002, p. 261). Sendo assim, a ideia da sociologia das ausências seria captar a relação hegemônica entre as experiências e identificar o que existe além dessa relação.

O que ele quer colocar, e que dialoga com o que pensamos em relação ao ensino médio noturno, é o que existe além dos binarismos, o que existe no ensino médio noturno que caminha além de sua relação com o ensino médio dos outros turnos. A sociologia das ausências colabora para pensarmos o turno noturno na medida em que compreende que “há produção de não-existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível”. Ora, pois, se não são essas características comumente referidas ao ensino médio noturno?

De acordo com o Relatório do Governo do Estado do Rio de Janeiro, SEDUC em números, em 2012 os turnos da manhã e tarde representavam juntos 61% das matrículas da rede, notando, contudo, uma diminuição das matrículas no turno da noite (23,7% contra 28% em 2011). É importante salientar que o próprio relatório reconhece que “a partir desse retrato, constatou-se que os principais desafios de adequação da oferta enfrentados pela rede pública estadual fluminense estão concentrados na região metropolitana e no turno da noite” (SEDUC/RJ, 2013, p. 03). Os alunos do turno noturno são predominantes nas Metropolitanas III, IV e VI — o que significa que os educandos são predominantes de localidades como Cascadura, Coelho Neto, Higienópolis (Metropolitanas III); Bangu, Realengo, Pavuna (Metropolitanas IV); e Caju, São Conrado e Praça da Bandeira (Metropolitanas VI), por exemplo. No entanto, houve redução da oferta (e da procura): em 2011, essas unidades administrativas eram responsáveis por 33% do total de turnos noturnos oferecidos na rede. Em 2012, passaram a representar, juntas, aproximadamente 28% da oferta deste turno. Embora o próprio Relatório afirma que “as Metropolitanas III, IV e VI continuam, contudo, sendo as únicas regionais que têm maior oferta de noturno em detrimento dos outros períodos”.

Vale ressaltar, ainda, que a alta participação no turno da noite das Metropolitanas da capital (III, IV e VI) não é puxada somente pela EJA, mas, também, pela elevada participação no Ensino Regular, o que nos leva ao destaque dos dados dos educandos do ensino médio noturno em relação ao turno matutino de Colégio estadual do Rio de Janeiro que participaram de uma pesquisa, de maio a outubro de 2015. “A sociologia das ausências não pretende acabar com as categorias de ignorante, residual, inferior, local ou improdutivo. Pretende apenas que elas deixem de ser atribuídas em função de um só critério que não admite ser questionado por qualquer outro critério alternativo” (Sousa Santos, 2002, p. 249 – nota 12). Isso significa que queremos tornar essa experiência social de cursar o ensino médio no turno noturna uma experiência social visível, considerada alternativa às experiências hegemônicas. Ou seja, superar as totalidades excludentes. Superar a existência de um ensino médio na Educação Básica que não valoriza ou visibiliza o ensino noturno. Enfim, para expandir o presente, ele propõe a sociologia das ausências. Para contrair o futuro, em um movimento contra a tradição científica, ele propõe a sociologia das emergências.

Sousa Santos (2002) discorre sobre uma sociologia das emergências com o intuito de contrair o futuro, em um movimento de diálogo com a sociologia das ausências, que expande o presente. Todo esse movimento se encontra na tentativa de uma reinvenção da emancipação social. Ele explica que esse conceito preside à sociologia através do conceito de “ainda não”, de Ernst Bloch (2005), fugindo do binarismo tudo/nada, em que “tudo parece estar contido como latência, mas donde nada novo pode surgir” (Sousa Santos, 2002, p. 254). Ele complementa (ibid, p. 255):

O Ainda-Não é a categoria mais complexa, porque exprime o que existe apenas como tendência, um movimento latente no processo de se manifestar. O Ainda-Não é o modo como o futuro se inscreve no presente e o dilata. Não é um futuro indeterminado nem infinito. É uma possibilidade e uma capacidade concretas que nem existem no vácuo, nem estão completamente determinadas (…). Subjetivamente, o Ainda-Não é a consciência antecipatória.

Por essa razão, um dos problemas fundamentais do pensamento de Ernest Bloch é buscar compreender a importância do aspecto subjetivo no momento objetivo da história, conseguindo captar o que aparece como tendência, mas de forma também racional. Por isso eles nos fala sobre um princípio da esperança, que nos leva a compreender como um estado subjetivo pode relacionar-se com o que ainda não aconteceu. A esperança, por si só, não garante o surgimento do novo, mas ela se baseia em um processo transformador porque não surge do nada: a razão/ a racionalidade é um elemento importante que intervém na esperança. Pois, a experiência da esperança é a tomada de consciência com o que ainda não é presente na subjetividade, mas que já deixa vestígios na história. A esperança, nesse ponto, é fundamental para a tomada da consciência do que ainda não aconteceu: “desde o princípio exige-se das pessoas que se adaptem ao tamanho do cobertor e elas aprendem a fazer isso; só que os seus desejos e sonhos não obedecem” (Bloch, 2005, p.451). Assim, o conceito de Bloch que preside a sociologia das emergências de Sousa Santos se inscreve em potência e potencialidade, ou, em outras palavras, capacidade e possibilidade.

E essa relação entre potência e potencialidade é a base para que haja uma investigação das alternativas viáveis no horizonte das possibilidades concretas de futuro, unindo ao real as possibilidades e expectativas futuras, maximizando a probabilidade de esperança em relação à probabilidade da frustração. Por isso, sobre a sociologia das emergências, Sousa Santos (2002, p. 254) afirma que: “consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear (um vazio que tanto é tudo quanto é nada) por um futuro de possibilidades plurais e concretas (…) que se vão construindo no presente através das actividades de cuidado”. O que ele está falando, em nossas palavras, é perceber no presente, através da esperança, uma tendência que seja não só consciente, mas também sobre os parâmetros da racionalidade, submetendo os planejamentos em capacidade e possibilidade. Assim, possibilidades possíveis se mostram a fim de colaborar para definir princípios de ação que promovam a realização das condições necessárias para, por exemplo, a reinvenção da emancipação social: “a sociologia das emergências amplia o presente, juntando ao real amplo as possibilidades e expectativas futuras que ele comporta” (Sousa Santos, 2002, p. 256).

Ao colocar como uma de suas funções as possíveis possibilidades em relação às tendências, para maximizar a esperança em detrimento da frustração, faz-se importante destacar os dados dos educandos do ensino médio noturno em relação ao turno matutino para pensar, especificamente, nos alunos do terceiro turno. Ao destacarmos em relação aos outros turnos, damos a eles visibilidade, podendo a partir de então reconhecer as capacidades, potências, tendências e possibilidades. Essa forma de ver o ensino médio noturno em uma escola pública do Estado do Rio de Janeiro corresponde ao que o sociólogo nos fala sobre o inconformismo ante uma carência cuja satisfação está no horizonte das possibilidades, sobre uma defesa das expectativas ante a frustração, apontando para novos caminhos de emancipações sociais, identificando pistas, sinais e vestígios de possibilidades futuras em tudo que existe. Pois, “para combater a negligência a que têm sido votadas as dimensões da sociedade enquanto sinais ou pistas, a sociologia das emergências dá a estas uma atenção excessiva” (Sousa Santos, 2002, p. 258);

A VISIBILIDADE DA LOCALIDADE NA TOTALIDADE

Em geral, os adjetivos do turno noturno se circunscrevem em um âmbito pejorativo, ou de desvalorização, assim como seus educandos, “cujas trajetórias são mais acidentadas e nas quais há maior incidência de distorção idade-série” (Costa, Koslinski; 2006, p. 142). O artigo intitulado “Entre o mérito e a sorte: escola, presente e futuro na visão de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janeiro” de Costa e Koslinski (2006) traz alguns dados que podemos analisar a partir desse ponto de crítica em relação ao turno da noite. O objetivo central do artigo era “compreender um processo social que estaria manifestando-se, entre outros aspectos, por um preocupante processo de esvaziamento de significado do espaço escolar, para uma parcela da população” (ibid, p. 133), realizando uma pesquisa de campo em que foram considerados os diferentes turnos que compõem o horário de funcionamento das escolas. Entre os diversos achados da pesquisa realizada, os autores afirmaram algumas diferenciações entre os turnos, em especial nas falas dos alunos:

Na Escola B, uma fala evidencia a diferença com que a escola trata turmas de diferentes turnos: “E também, se você entra aqui de manhã, é uma coisa, e de tarde é outra, parece que de manhã exigem uma ordem total, então têm que tratar todo mundo igual”. Outro aluno, ao referir-se ao turno da manhã, o caracteriza como tendo “ensino mais forte”. Já na Escola A, são os alunos da turma 01, do turno da manhã, que reconhecem receber tratamento diferenciado. Um aluno desse turno afirma: “Eu acho que o ensino da manhã é melhor do que o da tarde”. Essa percepção de ensino mais forte no turno da manhã, assim como o menor empenho e assiduidade dos professores, também é mencionada por alunos do curso regular noturno da mesma escola. (ibid, p. 144)

Os autores, ao tratarem os turnos de forma específica, ressaltam a heterogeneidade existente no ambiente escolar, o que pode ser um indício motivacional para o esvaziamento do significado do espaço, já que os sujeitos presentes não se identificam com a estrutura estabelecida. O destaque dos dados dos educandos do ensino médio noturno em relação ao turno matutino de Colégio estadual do Rio de Janeiro que participaram da pesquisa Grupo de Estudos sobre Diferença e Desigualdade na Educação Escolar da Juventude é uma tentativa de dar visibilidade para os educandos do turno noturna perante a totalidade que é o ambiente escolar, composto pelos três turnos de Ensino Regular. Afinal, “a possibilidade de um futuro melhor não está, assim, num futuro distante, mas na reinvenção do  presente, ampliado pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências” (Sousa Santos, 2002, p. 274). O destaque dos dados, ao fazermos uma leitura paralela entre os turnos, é uma maneira de tentar estar menos parcial o nosso conhecimento do que é possível, e também as condições do possível.

De acordo com os dados do Data Escola Brasil, disponibilizados para consulta pública pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), com informações disponíveis para consulta correspondem aos dados finais do Censo Escolar 2014, publicados no Diário Oficial da União no dia 09 de janeiro de 2015, o colégio em questão teve 1.751 matrículas no ensino médio, de um total de 159.992 matrículas realizadas no ensino médio público estadual do Rio de Janeiro. Trabalhamos com 994 questionários válidos, o que nos dá uma margem de erro de aproximadamente 6,5%, com um nível de confiança aproximado de 100%. Em termos absolutos, falamos de 454 questionários aplicados no turno matutino, 423 no turno vespertino e apenas 117 no turno noturno. Embora não se direcione objetivamente ao que pretendemos trabalhar ao longo desse texto, é importante ressaltarmos a crítica que se pode fazer em relação à diferença de questionários aplicados, que não se deve a um número menor ou maior de educandos, mas sim de uma displicência com o turno em relação aos professores-pesquisadores, que alegaram já estarem cansados para a aplicação.

Em relação à raça ou etnia, temos uma maioria declaradamente branca na escola, seguidos de pardos e negros, com apenas 6 educandos declaradamente indígenas. Em relação aos que se declararam negros, 46,7% frequentam o turno matutino, enquanto que apenas 13,9% estudam no turno noturno. Em relação aos declaradamente brancos: 46,5% frequentam o turno matutino, enquanto que apenas 7,7% estudam no turno noturno. A maioria do turno da noite declarou-se parda (23,4%).

Em relação ao gênero, a escola apresenta equilíbrio entre homens/ mulheres, não obtendo referências em relação a outros gêneros, como cis/ transsexuais. Há um total de 51,3% de mulheres e 48,7% de homens, sendo que o turno matutino possui um número maior de mulheres (51,7%) e o turno da noite com um número majoritário de homens (59,8%).

Sobre a idade, existe também um equilíbrio: a maioria encontra-se entre 17 e 18 anos de idade. Esse dado é importante pois contrasta com diversas afirmações sobre uma possível defasagem idade-série em relação ao turno noturno, como confirma Costa e Koslinki (2006, p.  140): “regular noturno (cujas trajetórias são mais acidentadas e nas quais há maior incidência de distorção idade-série)”. Importante verificarmos constantemente esses dados para averiguar a existência de uma tendência que se mantém ou que está em desconstrução, haja vista a expansão de ensino profissionalizantes no Brasil e dos programas de Educação de Jovens e Adultos que oferecem de forma integrada ou concomitante uma qualificação profissional, pois são novos espaços disponíveis para um público que, possivelmente, possuem trajetórias escolares com diversas rupturas e que procuram na qualificação educacional uma forma, também, de qualificar-se para os empregos disponíveis na sociedade.

Em relação a um discurso frequente sobre o turno noturno, os dados obtidos pelos questionários corroboram com o fato de que os educandos que optam uma matrícula para estudar à noite, na verdade, não o fazem por opção, mas por ser uma alternativa viável tendo em vista a questão do trabalho. Comum ouvirmos que no turno noturno existe uma proporção maior de alunos que trabalham e que já abandonaram os estudos durante, pelo menos, um ano. Embora não tenhamos dados em relação às rupturas nas trajetórias escolares, em relação ao trabalho: no turno matutino, 24% declararam que trabalham e 74% responderam que não (as demais porcentagens correspondem aos que optaram não responder); enquanto que no turno noturno, 57,2% declararam que trabalham e 42,7% responderam que não. Aos que trabalham, e que estudam no turno da manhã, a maioria se divide em dois tipos de trabalho: Jovem Aprendiz e estágios; enquanto que os trabalhadores que estudam no turno da noite se dividem em diversas profissionais, além do Jovem Aprendiz e estágios: vendedor, atendente restaurante, assistente de lojas de departamento, assistente de mecânicos, e construção civil, entre outras.

Dados que também chamam a atenção para a pesquisa, que objetiva a construção de conhecimento acerca da formação política da juventude contemporânea pela educação escolar, são as respostas em relação à participação em algum movimento social ou estudantil: apenas 04 educandos do turno noturno declararam que “sim” e 94 afirmaram que não participam ou já participaram. Entre os que marcaram que participam ou já participaram, entre os exemplos estão “votação de chapa” e “grupo de escoteiro”. Isso não nos dá um grande leque de afirmações ou hipóteses secundárias, mas nos chama a atenção para dois pontos, em especial: a) o entendimento que esses sujeitos têm sobre o que é um movimento social ou estudantil; b) a importância de uma formação política na e para a juventude no contexto da sociedade contemporânea.

Sobre a temática, destaco o artigo da docente Lúcia Rabello de Castro, membro fundador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa na Infância e Adolescência Contemporâneas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que ela “analisa a relação entre juventude e política no contemporâneo, tendo como foco de discussão o processo de subjetivação política, que implica a construção do pertencimento à coletividade e a responsabilização pela vida em comum” (Castro, 2008, p. 253). A professora trabalha ao longo do texto que uma formação política se relaciona com como um sujeito se identifica com o coletivo, como se vê no interior e parte de um todo tão desigual e heterogêneo:

Para o jovem, “sair de casa”, no sentido de assumir-se como integrante da polis ou da nação, significa entender-se como “tendo a ver” com o estado de coisas ao seu redor e interpelado a responsabilizar-se por elas. Pertencimento e responsabilização imbricam-se e constituem aspectos subjetivos primordiais no processo de assumir-se como membro de uma sociedade, seja ela qual for. (idem)

Isso nos leva aos últimos dados que compõem o estudo desse artigo. O primeiro responde à seguinte pergunta: “Você vê a necessidade de um grêmio na escola?”. Considerando a totalidade da escola, 76,8% responderam que sim. Destacando-se os turnos, no matutino 75,4% responderam que sim, enquanto que no noturno 72,4%. No entanto, ao responderem sobre “Você gostaria de participar do grêmio do seu Colégio?”, apenas 8,4% dos estudantes do turno da manhã responderam que sim, enquanto que no turno da noite 17,3% afirmaram que gostariam de participar. O que chama a atenção, ainda, foram a quantidade de questionários que tinham como resposta “não sei”: 21,1% do turno matutino e 31,6% do turno noturno, indicando a complexidade da formação política da juventude contemporânea pela educação escolar e a necessidade de uma maior atenção para essa temática.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Os dados nos revelam uma especificidade do turno noturno que não se contradiz em absoluto ao turno matutino, embora a historicidade da construção do “estudar à noite” carregue rastros que deslocam a sua origem já tão definida como particularmente ao público trabalhador, e equivocadamente fixada: “O rastro não é somente o desaparecimento da origem, ele quer dizer aqui (...) que a origem nem ao menos desapareceu, que ela não foi constituída senão em contrapartida por uma não-origem, o rastro que se torna, assim, a origem da origem (Derrida, 1967, p. 90)”. O que o filósofo nos aponta, em poucas palavras e procurando não abranger, aqui, a complexidade de sua teoria, é que não devemos pensar no turno noturno e já relacioná-lo distintamente da totalidade do ambiente escolar, diferenciando os educandos a partir de uma origem que não existe.

Ao desacelerarmos o presente, dando-lhe um conteúdo mais substantivo, evidenciamos que o turno noturno, apesar de ser tratado como “o” diferente no ambiente escolar, incluindo os tratamentos curriculares, pedagógicos e do cotidiano escolar em geral, não é um espaço à parte do Colégio. Se o foco de Sousa Santos (2002) foi estudar alternativas à globalização neoliberal produzidas por movimentos sociais e organização não governamentais, na luta contra a discriminação, a exclusão e pela qualidade de vida das minorias, ele nos indica o quanto é importante tornarmos visíveis os sujeitos do turno noturno para se compreender o ambiente escolar, podendo aí encontrarmos iniciativas que contribuíam para direitos coletivos e cidadania cultural. Por que não pensarmos a inclusão social a partir do ambiente escolar no turno noturno? Por que a escola no turno noturno não possui a vitalidade dos turnos diurnos?

O destaque dos dados dos educandos do ensino médio noturno em relação ao turno matutino nos mostra que existe sim uma outra realidade, mas que não se distingue em relação ao turno da manhã. Existe algo que precisamos estabelecer enquanto direção de análise: a diferença entre os turnos existe sem depender das relações. Isso significa que não existe um centro de necessidade ou de fixação que controla o que é correspondente ou não, pois ao mesmo tempo em que um pode diferenciar do outro, esse também se diferencia de si mesmo, em um movimento que corresponde que nada é, mas tudo está sendo, em constantes deslocamentos e movimentos.

A sociologia das ausências é aquela da razão indolente que produz ausências, que produz exclusão. Ao crer que apenas a ciência é um pensamento válido, exclui os outros saberes. Ao considerar apenas que os turnos matutino e vespertino importam, excluem o turno noturno, dos professores e educandos já exaustos após as 18h00, caminhando para o terceiro turno de um dia todo de atividades. O que falar sobre cidadania ativa e participação em movimento social ou estudantil com sujeitos taxados pelo cansaço e pela indisposição?

E assim, por quê não, a sociologia das emergências? Essa contribuirá para englobarmos o turno noturno na totalidade do que é um ambiente escolar, considerá-lo dentro do todo, seus saberes, suas angustias, suas alternativas, conferindo legitimidade e visibilidade aos saberes produzidos pelo modelo hegemônico e antidemocrático como não-existências. O que Sousa Santos (2002) nos sugere, em síntese, é que alternativas existem e se movimentam no nosso cotidiano, e aqui destacamos o ensino noturno enquanto uma categoria a ser considerada ao se pensar o ambiente escolar – categoria excluída do que entendemos pelo ensino regular básico. Alternativas que, desprezadas por uma homogeneidade pelos turnos diurnos, estão sendo desperdiçadas ao não serem consideradas como parte de, que não é diferente, mas que pode sim possuir suas especificidades. Afinal, o processo formativo pressupõe o reconhecimento da pluralidade e da alteridade, condições básicas da liberdade para o exercício da crítica e da criatividade.

REFERÊNCIAS

BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Trad. Nélio Schneider. EDUERJ: Contraponto. Rio de Janeiro. 2005.

CASTRO, Lucia Rabello. Participação política e juventude: do mal-estar à responsabilização frente ao destino comum. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 253-268, jun. 2008.

COSTA, Marcio da., KOSLINSKI, Mariane Campelo. Entre o mérito e a sorte: escola, presente, futuro na visão de estudantes do ensino fundamental do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 31 jan./abr. 2006

DERRIDA, Jacques. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro, 2002.